quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Bobo da corte

Elifas Andreatto
O que dissera, hoje, por verdade, amanhã seria contradição. Arrumava os compartimentos da casa, mas desconsertava-se na vida, disposta a não olhar para estragos. Havia um anjo do mal que a induzia a vingar-se, a não dá o braço a torcer, a contracenar com o inimigo. Um anjo bondoso, em dia ameno, dava-lhe o gosto pela beleza e a liberdade de sair por aí. E, à noite, Deus arrumava o palco e emprestava-lhe a voz para que ela reinasse, soberana. E dizia-se injustiçada, guardava ressentimento de épocas difíceis e competitivas, mas atropelava tudo com a força visceral do seu canto: parecia carregar o  peso de uma grande misssão. "Divido tudo, mas o palco, esse eu não divido com ninguém", assegurava a artista. 
Podia-se até dizer que ela se defendia com palavras ríspidas e imediatas, esbanjando munições cotidianas, mas seu projeto musical ia além das trivialidades, dando origem a uma artista comprometida com a humanidade, daí a necessidade de prosseguir contestadora e valente. O palco era o único lugar seguro, onde ela armava a lona do circo e entrava no picadeiro: o bobo da corte não entrega os guizos...
Tinha um comportamento arrepiado, mas abria brechas à ternura; revelava-se fortemente engajada à realidade política brasileira do seu tempo; no entanto, sua obra é um legado de relevante contribuição cultural. Era mutante, raro rebento de vida: desabrochava-se para não ser casulo.
Ninguém ousava detê-la na velocidade voraz de imprimir sua história. Acreditou em seu talento e foi à luta: cantava em ritmo de atropelar. E assim seguiu indomável, aperfeiçoou o canto para  ser sua expressão verossímil.

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