"No dia em que eu vim me embora não teve nada demais... Mala de couro forrada com pano forte, brim cáqui,/ minha vó já quase morta, minha mãe até à porta, minha irmã até à rua e até o porto o meu pai. O qual não disse palavras durante todo o caminho..." (Caetano Veloso)
Conheci Elis Regina no disco Falso Brilhante: o único disco da cantora na pequena cidade de Nova Palmeira-Pb, onde eu morava, em 1978. E sob a influência do sucesso avassalador do show, este exibido no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, uma pessoa conhecida presenteara uma irmã, que tinha uma vitrola. Em meio aos Novos Baianos a voz de Elis destacava-se, e quando chegava algum visitante eu falava daquela voz marcante: o cicerone. Naquele pequeno acervo descobri o Rancho da Goiabada, cantada pelo próprio compositor, João Bosco... Tudo era muito difícil, os discos vinham de Campina Grande-Pb; hoje, em qualquer fundo de quintal, tem uma pessoa gravando CD, DVD. E, evoluindo para radiola, o som tinha mais qualidade, mas tínhamos que pedir favores para entrar nas casas ou ouvíamos da calçada.
Em meados de 1977 eu tinha 15 anos de idade, e já sacava o Brasil daquela década. Em 1979 o disco de Chico Buarque tinha duas faixas fortíssimas: Apesar de Você e Cálice, confrontando-se com o período de repressão que se vivia no país. No entanto, o Lp Essa Mulher, onde ela cantava O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), marcando a abertura política, num período em que ela fora hostilizada pela esquerda, não fora comprado pelas amantes de Roberto do Carlos,... P'ra não dizer que não falei das flores, do paraibano Wandré, exercia muita força política, imprescindível nas rodas de violão, parecia despontar a revolução... Depois de 10 anos da morte de Elis os LPs, Autógrafos de Sucessos 2 (Andança, Black Beautiful, Samba do Perdão...); Como & Porque (Récit de Cassard, Memórias de Marta Saré, Vera Cruz... ), foram-me apresentados, jamais soubera da existência desses discos por aqui.
O rádio ainda era o grande comunicador. Pouca gente possuía aparelho de televisão. A programação era transmitida da TVE-Rio, para TVU de Natal-RN. A Tv Tupy exibia a novela Como Salvar meu Casamento (Nicete Bruno, Adriano Reis, Kito Junqueira); Flávio Cavalcanti (Nossos Comerciais, por favor); O Cassino do Chacrinha (Alô, alô Terezinha... Quem quer bacalhau?); Ayrton e Lolita Rodrigues (Almoço com as Estrelas), aproximando Jair Rodrigues & Elis, onde eles improvisaram algumas canções... Em pouco tempo surge O Fino da Bossa, e sob o comando de Walter Silva os dois começaram uma parceria que durou três anos; shows lotadíssimos e três discos gravados, de sucessos inesquecíveis.
O interesse pela leitura me direcionava à boa música. Em 1980 - nem chorando nem sorrindo - fui embora, sozinho, pra capital; minha mãe até à porta enxugava os olhos, acenando com um pano de prato; meu pai, até à porteira, não dizia uma só palavra... A paisagem correndo na vidraça embaçada de poeira e minha primeira calça jeans na bolsa de lona.
E os discos lançados por Elis, nos anos 70, começaram a cair em minhas mãos. Em 1981 conheci a discotecária Maria da Penha, da Rádio Borborema, em Campina Grande-Pb, que sempre incluía as músicas dela na programação e me dedicava. E logo fiquei conhecido como grande admirador da cantora. Curiosidade: só conheço dois compactos de Elis: o que lançou Madalena (1970) e Elis em Paris (1968).
E despertando um interesse maior pela obra da artista, numa conversa sobre MPB, enalteci o nome do Rei, aquele que bota e tira mazelas de amor, com milhões de discos vendidos. Mas o cantor que se projetava em minha frente era Chico Buarque de Holanda, com a melhor proposta musical, desde Construção, A Banda e Cotidiano. E, exatamente por volta das 11:00 horas, falei da música de Elis Regina, a cantora que eu estava descobrindo... Não me cansava de escutar Gracias a la Vida, Los Hermanos, Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais. Em chão cimentado, sentado numa esteira, eu tomava cachaça, arrancando essas canções dos arranhões da 'broa' - o disco -, que iam sendo repensadas, reeditadas: Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você não sente nem ver... que uma mudança, em breve, vai acontecer... O rapaz com quem eu conversava levou maior susto, mudou de cor, engasgou-se: "E você não sabe? Elis Regina morreu nesta manhã, há poucas horas, está maior confusão em São Paulo..." E saí de mãos à cabeça, andando a pé, contornando a reserva ecológica da cidade universitária, em João Pessoa-Pb; buscava o ar, a verdade. E nos corredores do Hospital das Clínicas-SP os amigos nada entendiam; a atriz Tônia Carreiro não quis viajar, lastimava o trâmite obrigatório submetido àquela dama da MPB. Os músicos duvidavam: queriam ouvir a voz de Elis... E aos poucos o país ficou sabendo, parando e chorando com a notícia fatídica de 19 de janeiro de 1982. O corpo miúdo de Elis sobre o mármore frio: um corte vertical do queixo à pelve. E vem o laudo inoportuno, inesperado e suspeito, daqueles assinados nos porões da ditadura...
No dia em que Elis foi embora todos lembraram de mim. A discotecária chorou... Apressei-me em pegar o lotação e os olhares cruzavam-se com perplexidade: legião de ór(fã)os, da rua central à periferia. E a semana inteira recebendo cartas, também choradas, a derramar melancolia em mim...
Quando voltei a Nova Palmeira-Pb, o disco Falso Brilhante, que eu ouvi pela primeira vez, foi-me presenteado, virou relíquia. A mulher que morria dava à luz ao mito. Um pesquisador ou zelador de memória? elisreginólogo, na visão do pensador Alemão Theodor Adorno... E num arroubo de saudade recorto fotografias publicadas, faço colagem, ligo a Tv, escrevo poema e arrumo o acervo na estante: meus discos, meus livros e nada mais... Quando canto P'ra dizer adeus, canto triste. Canto mais na acústica do banheiro, debaixo do chuveiro, rosto na bacia: lavatório e choratório; solto a voz nas estradas, e deito-me sob os trilhos, vejo o trem passar no cair da tarde, sumindo, debaixo do sol-pôsto; gritos e ferramentas zoam nas construções; no circo, com passos miúdos e bêbados, o palhaço me lembrou Carlitos...
Às vezes, em crise, o outono se instala em mim e recuso-me a ouvi-la, vê-la; a saudade vem à tona, rebenta, despetalando, desmoronando: vai esfriando, por dentro, o ser. Mas tenho que acender a fogueira da paixão, na incumbência de ser guardião de sua memória.
É pela porta da vida que estreamos o mundo, onde quase tudo é deslumbramento; no entanto, todos nós regressaremos pela porta da morte; às vezes, sem fé, de mãos vazias, sem cordas pra segurar, e tudo poderá dá em nada, nada... Entre o copo, a vitrola e a fumaça, o carrasco da solidão se esconde na noite dos marcarados. Amanhece, Elis precisa ir, mas seu caminho é sem volta... E parafraseando José Roberto Sarsano (escritor, músico e amigo da cantora), Elis voou para sua estrela seguindo os rastros do Pequeno Príncipe. De peito ao vento, libertou-se; encontrou um mundo novo, vida nova; mora em nosso pensamento, pousou em Marte, na Estrela D'alva... Os braços velejando, fazem arrastão no mar sem fim das galáxias.
Foto: Hilmar Pabel
Créditos: imagem superior - elisreginac.c.zip.net. Citações: Zé Rodrix, Nelson Motta, Rita Lee, Belchior, Milton Nascimento, Chico Buarque, Fagner, Edu Lobo, João Bosco, Paula Dipp, Tom Jobim. Parafraseando: Walter Barbosa (tablóide O Tudo); ensaio de José Roberto Sarsano (Blog Boulevard des Capucines); "No dia em que eu vim me embora" (Caetano Veloso); "Se eu quiser falar com Deus" (Gil); "Cão sem Dono" (Sueli Costa - Paulo César Pinheiro); "Mundo Novo, Vida Nova" (Gonzaguinha); "As Aparências Enganam" (Tunai/Sérgio Natureza) "Samba da Pergunta" (Marcos Vasconcelos)